RIA: uma ferramenta para garantir a integridade das pesquisas clínicas

Mensagem-chave: evidências científicas podem vir de estudos com dados falsos, falhas éticas ou métodos duvidosos. A ferramenta RIA – Research Integrity Assessment Tool avalia a possibilidade de ocorrência deste problemas em pesquisa.
Contexto:
Como estudantes de medicina, somos constantemente ensinados a confiar nas evidências científicas que sustentam nossas decisões clínicas. Mas… e se algumas dessas evidências vierem de estudos com dados falsos, falhas éticas ou métodos duvidosos? Foi exatamente essa preocupação que motivou a criação da ferramenta RIA – Research Integrity Assessment Tool.
O que é o RIA?
O RIA é uma ferramenta desenvolvida por um grupo de pesquisadores ligados à Cochrane (Weibel et al., Res Synth Methods, 2023) para avaliar a integridade de ensaios clínicos randomizados (ECR) antes de incluí-los em revisões sistemáticas.
A ideia é simples, mas muito importante: antes de analisar o risco de viés, precisamos primeiro ter certeza de que o estudo é real, ético e confiável.
Durante a pandemia de COVID-19, especialmente nas revisões sistemáticas sobre ivermectina, os autores perceberam que muitos estudos pareciam “problemáticos” — alguns foram até retratados (retirados após publicação) por má conduta científica. Isso levantou uma questão: como detectar e filtrar estudos que não deveriam nem entrar na análise?
Como funciona o RIA?
O RIA avalia seis domínios principais, que funcionam como etapas de triagem. A cada etapa, o estudo pode ser:
- ✅ Incluído (se tudo estiver em ordem)
- ❌ Excluído (se houver falha crítica)
- ⏳ Mantido em “aguardando classificação” (se houver dúvida e for preciso esclarecer com os autores)
Vamos entender esses domínios de forma prática:
- Retratação ou expressão de preocupação
Se o artigo foi retratado ou há um alerta formal de dúvida (como uma expression of concern), o estudo deve ser excluído. Não dá para confiar em dados já considerados inválidos. - Registro prospectivo do ensaio clínico
O estudo precisa ter sido registrado antes do início da inclusão dos participantes (em plataformas reconhecidas como ClinicalTrials.gov ou WHO ICTRP).
Isso garante transparência e evita mudanças de desfechos depois do estudo começar. - Aprovação ética e consentimento informado
O ECR deve mencionar qual comitê de ética aprovou o estudo e se houve consentimento informado.
Se não houver essas informações ou o comitê não for reconhecido, o estudo não deve ser incluído. - Grupo de autores
Aqui o RIA avalia se o grupo de autores e suas afiliações fazem sentido para o estudo descrito.
Um único autor publicando um ensaio randomizado grande, ou autores de um país onde o estudo não ocorreu, podem levantar suspeitas de falsificação. - Plausibilidade e clareza dos métodos
O artigo precisa descrever claramente como foi feita a randomização e o delineamento do estudo. Métodos vagos, ausência de detalhes ou números “certos demais” entre os grupos podem indicar problemas de fabricação de dados. - Plausibilidade dos resultados
Resultados “bons demais para ser verdade”, número irreal de pacientes recrutados, ou dados inconsistentes entre texto, tabelas e gráficos são sinais de alerta.
Nesses casos, o estudo fica em análise até os autores explicarem.
O que o RIA muda na prática?
Como exemplo, durante a atualização da revisão Cochrane sobre ivermectina, a aplicação do RIA levou à exclusão de 11 estudos dos 25 incluídos na primeira versão – mais de 40% dos estudos avaliados!
Isso mostra o tamanho do problema: sem esse tipo de filtro, revisões e diretrizes clínicas poderiam ser baseadas em evidências inexistentes ou fraudulentas.
Além disso, o RIA reforça que ele não substitui a ferramenta ROB (Risk of Bias), mas vem ANTES DELA. Em outras palavras, antes de discutir se o estudo tem viés, precisamos confirmar que ele realmente existe e respeita a ética científica.
Por que isso importa ?
Como futuros médicos e pesquisadores, entender ferramentas como o RIA nos ajuda a:
- Desenvolver pensamento crítico ao ler artigos científicos.
- Reconhecer que nem tudo que é “publicado” é necessariamente válido.
- Valorizar a boa prática clínica e ética na pesquisa.
- Contribuir para uma medicina baseada em evidências de verdade.
Referência:
Weibel S, Popp M, Reis S, et al. Identifying and managing problematic trials: a Research Integrity Assessment (RIA) tool for randomized controlled trials in evidence synthesis. Res Synth Methods. 2023;14(3):357–369. doi:10.1002/jrsm.1599
Autores:
Daniela Pires e Luis Eduardo Fontes.